terça-feira, maio 03, 2011

Os Consumos que Nos Consomem


Somos aquilo que consumimos, mas também aquilo que nos consome





São muitos os consumos que, aos poucos, nos consomem. Há aqueles que nos tira o sossego e nos apoquenta. Outros, ainda, existem que, sem fatalismos, podem ser melhorados, para o bem do nosso bem-estar físico, psíquico e económico. Só assim, podemos criar uma economia solidária, atenta a quem vende e ciente de que a satisfação deve estar sempre do lado da procura, ou seja, dos consumidores. No presente artigo, enquanto elencamos alguns consumos (tais como a bebida; o supermercado, os bares, os restaurantes, os cafés e o comércio informal), discutimos as pistas para evitar que sejamos consumidos passivamente pelos nossos próprios consumos.


Aguardente



A percentagem de adolescentes e jovens cabo-verdianos que, nestes últimos anos, ingerem álcool até à embriagues tem aumentado à vista desarmada. Aliado ao consumo do álcool, sempre esteve uma certa inabilidade dos pais, encarregados de educação, autoridades de saúde e policiais em lidarem, de forma consertada, com o problema. Já dizia o especialista português, Eduardo Sá, que “atrás de uma criança problemática está sempre um adulto com problemas”. Ademais, o uso de palavras indecentes, o barulho e a algazarra que, muitas vezes, quebra a monotonia das aldeias, o conforto dos lares e provoca a subida da tensão arterial dos idosos enraivecidos acaba por alongar a lista dos danos colaterais do vício da bebida que, convém salientar, situam numa fronteira onde a ninguém é chamada a responsabilidade.

O consumo exagerado do álcool, sobretudo pela juventude, inquieta-nos. Inquietará, principalmente, aos não consumidores, na medida que, aos poucos, vão perdendo amigos, vizinhos, conhecidos. Perante esse cenário, reina uma inércia das autoridades competentes e da sociedade que chega a ser gritante. Ao que os olhos nos mostram, todos parecem estar de braços atados perante o desmembramento da vida alheia.

Vivemos numa sociedade onde, a “grosso modo”, só os “pobres anónimos” morrem vítimas do álcool. Pelo contrário, as figuras “conhecidas” como, por exemplo, cantores de refinada qualidade, músicos autodidactas, políticos, médicos, engenheiros, juristas, jornalistas, entre outros profissionais, morrem vítima, não do grogue porque lhes fica mal ao “Status Quo” e ao “Curriculum”, mas sim de uma moléstia que o povo comum desconhece o significado e a considera, por isso, sofisticada: cirrose hepática.

O Manel, o Cassafi e o Tatoni, pessoas humildes e, por isso, desconhecidas do grande público (entre tantos figurantes de uma longa lista em crescendo) foram actores do consumo e vítimas claras e esperadas do grogue perante o olhar de todos, inclusive do autor deste artigo, na altura adolescente. Contudo, em Cabo Verde, neste aspecto particular, vivemos um paradoxo: em termos de legislação sobre o consumo de álcool, a menores de idade estamos bem posicionados no patamar de País de Rendimento Médio. No que tange à fiscalização e à aplicação da lei, somos terceiro-mundista. Senão, vejamos: se, por um lado, a lei que proíbe a venda e o consumo de bebidas alcoólicas a menores de 18 anos, existe, desde 1997 e encontra-se (pelo menos para os sóbrios) visivelmente afixado nos estabelecimentos do país, por outro, a sua aplicação deixa muito a desejar dado que não se conhece nenhum estabelecimento multado ou fechado por conta da lei em apreço.

Nota-se que diariamente os menores de idade (crianças e adolescentes) frequentam os estabelecimentos e/ou compram bebidas alcoólicas para o consumo próprio ou de outrem) bem como os alcoólatras que se madrugam, dia sim, dia sim, à porta de quiosques, alambiques, tabernas e botequins, a fim de comprarem mais uma pinga de aguardente. Todo esse processo desenrola-se nas barbas da placa que ostenta o artigo 2 e 3 da lei nº 27/V/97 que o dono do estabelecimento já nem faz caso, ou seja, o ignora, enchendo convenientemente o copo, sem olhar o BI do cliente em caso de dúvida, em nome da sustentabilidade do negócio.

A solução, quanto a nós desejável, passa pelo cumprimento ou aprimoramento das seguintes medidas: a) consciencialização da sociedade feita, sobretudo, nas escolas do EBI e liceus. Ou seja, desde a tenra idade, o álcool deve ser encarado como droga e evitado, quer quando incentivado pelos colegas, quer noutras circunstâncias infelizes b) o zelo no cumprimento escrupuloso da lei como garante da dissuasão do uso do álcool e da dificuldade de acesso ao consumo e, por último, c) desafiar os técnicos de saúde, de combate às drogas, de instituições que prestam apoio social (às crianças, jovens e adultos) a baterem /visitarem o país real, sobretudo as comunidades situadas longe dos centros de decisão, a fim de testemunharem o drama e o desespero das famílias que se encontram em processo inicial, adiantado ou, já sem voltas, no combate solitário à dependência do álcool.

Ademais, constitui um dever moral do Estado, estimular as instituições públicas e ONG’s a operarem de forma consertada no acompanhamento dos jovens e menos jovens que estão a perder a sua dignidade a conta do álcool, dado que este malefício, socialmente, não é reconhecido como uma droga do tipo marijuana, padjinha, cocaína, entre outros. Pelo contrário, o mesmo é visto, no início, como um passatempo, um elo de confraternização e de socialização e, com o passar da carruagem, o passaporte para o fim da linha.


Supermercado


Nem todos os cabo-verdianos gastam a sua economia no copo. Contudo, existem outros consumos que, também, os consomem: o supermercado. Numa simples ida às compras, enquanto andamos pelas prateleiras a encher o cesto/ carro e a satisfazer as necessidades básicas da despensa, podemos, em jeito de monólogo, analisar a situação do país e tirar daí várias conclusões, mais ou menos desconfortáveis:

a) Raros são os produtos cabo-verdianos nas prateleiras das lojas. Ou seja, trabalhamos para comprar o que vem de fora;

b) Os produtos são caros dado que os custos de importação associados à margem de lucro dos comerciantes e a sede de receita por parte do Estado, em sede do IVA, assim determina a condenação do consumidor;

c) Muitos produtos importados são de marca e, nos países de origem, nem sempre são os escolhidos pela classe média que, pelo contrário, prefere, sobretudo em tempos de crise, marcas dos supermercados (com boa qualidade e mais baratas);

d) A ausência de entidades reguladoras, centrais únicas de compra e transportes marítimos (de longo curso) subsidiados justificam os preços proibitivos para quem ganha pouco enquanto garante o conforto dos comerciantes que sabem que quem reside nestes “dez grãozinhos de terra”, seja ele pobre, remediado ou rico, não consegue (sobre)viver sem a barriga;

e) Por último, numa ida ao supermercado parece, por momentos, que vivemos numa ilusão. Pois, fica a sensação que andamos num luxuoso Pingo Doce, Carrefour, Modelo, Palácio Fenícia, Continente, Sainburry´s, Calu & Ângela e Leclercq para ricos. Contudo, a viagem de regresso a casa, a partir da caixa registadora, faz-nos sentir mais pobres, sem alternativas e progressivamente empurrados para a Trindade, ou seja, para a ala psiquiátrica do Hospital Agostinho Neto.


Bares, Restaurantes e Cafés


Longe vão os tempos em que ir a um bar, café, restaurante era visto como um hábito típico dos emigrantes em férias, “cooperantes”, turistas ou da classe média alta residente. Precisamos de aprimorar o hábito de venda dado que raros são os pontos no país onde se consegue, por exemplo, apreciar um bom café, receber um notável tratamento enquanto cliente, comer um prato distinto e voltar sempre para o apreciar. Pois, falta profissionalismo, treino e regularidade na prestação de bons serviços. Enfim, raríssimos são os casos em que se volta ao estabelecimento por causa da química criada. Acontece, sim, que, na maioria dos casos, o cliente volta, embora cabisbaixo, porque não encontrou outras alternativas; houve um/a ou outro/a funcionário/a simpático/a que o justifica a tentar a sorte de novo ou, finalmente, se acomodou e, sem stress, desistiu de procurar por um atendimento digno.


Comércio Informal (Comes e Bebes ao ar Livre)



Deixar-se levar pela aventura ou pelo simples prazer de sair com a família, amigos, namorado/as para passear fora dos centros urbanos de modo a comprar um torresmo, linguiça ou um simples prato típico cozido a lenha, põe o aventureiro de frente com uma realidade típica deste país insular e exótico. Os empreendedores são pessoas humildes, sem estudos, sem grandes conhecimentos de HACCP* que ganham a vida servindo a gente simples que não olha ao redor daquilo que consome.

Sabe-se, contudo, que, num país com vocação turística, quem pode paga o preço justo pela qualidade do serviço prestado, mas para que isso aconteça realmente e de forma massiva, os empreendedores/comerciantes devem obedecer uma regra de ouro: dar segurança ao cliente. Imaginem a desilusão de quem andou quilómetros à procura de um determinado serviço ou produto e quando chega não o encontra porque simplesmente não existe a preocupação de satisfazer a expectativa mínima do cliente.



E se Houver Solução… Que Chegue a Tempo



Não existem fórmulas mágicas para a mudança. O segrego está no trabalho sério e concertado. Temos a matéria-prima de sobra para provocar a mudança de paradigma para um País de Rendimento Médio: o homem cabo-verdiano que, estudado ou não, residi no país e na diáspora e encontra-se disponível para servir quando for bem estimulado.

Seria desejável que tivéssemos políticas públicas humanas e coerentes. Por exemplo, deve existir uma política de combate ao alcoolismo com gente armada de conhecimento e munida de vontade para debelar o problema assim como outrora foi feito no combate ao analfabetismo. Nesses tempos, os jornaleiros das FAIMO, Frentes de Alta Intensidade de Mão-de-obra, que não sabiam ler e escrever eram, por algumas horas, dispensados para poderem tranquilamente assistir, no conforto das sombras das acácias, as aulas de alfabetização.

Quanto aos outros consumos que nos provocam “stress”, seria conveniente apetrechar as equipas de inspecção com distintas funções: de aconselhamento para os empreendedores mais humildes que agem na informalidade e de repressão para todos os que prestam serviços que, por um lado, ponham em causa a saúde pública e a sustentabilidade ambiental e, por outro, minam a confiança dos clientes.

Sem a pretensão de ter um micro estado perfeito, almejamos que tenhamos sim políticas públicas coerentes que garantam tratamento adequado aos alcoólatras; que resgatam os toxicodependentes, sem descurar do mais económico: a prevenção; que os nossos empreendedores, incluindo as vendeiras em postos fixos tenham direito a carta sanitária, visitas regulares das agências promotoras do empreendedorismo local, dos inspectores das actividades económicas e sanitárias a fim de garantirem a segurança dos consumidores que possam usufruir de serviços prestados com profissionalismo e temperados q.b. com os seguintes ingredientes: dedicação genuína no servir e ambição em superar as expectativas do cliente.



Albino Luciano Silva
Mestre em Educação (esp. Administração e Organização Escolar) e Pós-graduado em Gestão e Avaliação da Formação.E-mail: s_albino21@hotmail.com; Blog: edukamedia, disponível em http://www.edukamedia.blogspot.com/





* HACCP: Hazard Analysis and Critical Control Point ou, análises de perigos e controlo de pontos críticos, tradução portuguesa.

Texto de Opinião publicado no Jornal ASemana, Cifrão, Economia, 22 de Abril de 2011, ano XX, nº 981, pag.12

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