terça-feira, novembro 14, 2006

In memoriam do Professor Félix Correia

Recordar os nossos professores, da escola primária, constitui uma viagem emocional à nossa infância. Algo que é indissociável das brincadeiras, das brigas, dos medos, e, sobretudo, da relação que, hoje, mantemos com a escola, tendo em conta a criança (aluno/a) que transportamos dentro de nós. Essa jornada pode ser feita com sorriso, caso o passado deixou saudades, ou com mágoas, se pelo contrário, o mesmo deixou correr lágrimas que o tempo não soube enxugar. Em qualquer dos casos, espera-se um bom momento de psicanálise. São relatos que comovem a qualquer pessoa, quer se trate de alegrias, quer se trate de traumas que, infelizmente, ainda, perseguem quem os testemunhou.
A figura central deste texto, nunca foi à televisão, nunca viajou para fora de Cabo-verde, nunca recebeu um prémio pelo serviço prestado à sua aldeia e, de uma forma mais lata, ao seu concelho e país, mas é um ícone para todos os habitantes da sua aldeia natal, Ribeirão boi (e arredores). Iniciou a sua actividade docente, ensinando a ler e a escrever aos jovens e adultos de Ribeirão boi e Serelho (Concelho de Santa Cruz), gratuitamente.
A experiência adquirida na alfabetização de adultos motivou-o, a candidatar-se ao lugar professor-monitor para poder, assim, leccionar no sistema formal de ensino. Foram registadas, neste sentido, várias tentativas infrutíferas. Contudo, depois de muita insistência, conseguiu o almejado lugar. Ainda, assim, alcançado o seu objectivo, depois das aulas com as crianças, proseguia, religiosamente, o contacto com os adultos, na sua maioria, mulheres que nunca foram à escola ou então que a abandonaram, precocemente, sem saber ler e escrever; por coação ou, então, para salvarem a pele…
O professor Félix, como é conhecido, além de exímio na arte de ensinar e praticante confesso da tutoria, tinha um sentido de humanidade que o fez granjear respeito entre miúdos e graúdos. Por diversas vezes, tirou, do seu bolso, o dinheiro para nos garantir uma refeição quente (medida legalmente consagrada), quando os géneros do PAM (Programa Alimentar Mundial) se atrasavam. Além disso, vezes sem conta, utilizou a capela da aldeia para nos dar aulas, quando outras alternativas falhavam. Recordo-me de uma época, quarta classe, estar com problemas numa determinada disciplina e durante o intervalo, enquanto os meus colegas brincavam, ele chamava-me ao quadro e certificava, com delicadeza, se eu tinha dominado certos conteúdos e atingido o nível de proficiência para novas aprendizagens. Hoje, relembro o seu gesto como um incentivo para o meu percurso escolar que ele perspectivava longo.
Como qualquer pessoa, também tinha os seus defeitos. Apesar de ter nascido e vivido numa aldeia agrícola nunca se envolveu activamente nos trabalhos campestres. O seu gosto era ensinar e fazia-o com as subtilezas dignas de um mestre.
Félix Correia Duarte desapareceu do mundo dos vivos, mas a sua memória fica para sempre conservada no meu coração e, certamente, da maioria dos seus alunos. Agora, cabe-nos lutar para preservarmos o seu legado. Uma boa forma de o fazer, formalmente, será a luta pelo baptismo da Escola Eecundária de Santa cruz (que infelizmente já foi baptizada) ou de qualquer outro equipamento pedagógico de relevo com o seu nome.
Para nós, ele foi o nosso verdadeiro Paulo Freire: dedicou a sua vida a encorajar-nos a ver para além da enxada e da pequenez da nossa aldeia…Queria que perseguíssemos a linha do horizonte.

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