sábado, janeiro 16, 2010

Apresentação do autor e da obra “Rimas no Deserto”


1. O Homem por detrás do poeta

Silvino Lopes Évora é um homem multifacetado, gosta de dançar, cantar e escrever prosa e poesia. Quando chegou a Coimbra cantava, embora achasse que tivesse mais jeito como compositor, algo aliás que o tempo veio a provar com a composição “Bandeira Tarrafal”. Música batucada pelas batucadeiras do grupo “Pó di terra”, a quem envio uma nota de apreço.
Silvino é uma pessoa amiga e companheira que nunca deixa cair no conformismo quem com ele convive, dado que sonha em voz alta e contagia quem o houve, mostrando que o mais importante é valorizar o optimismo da vontade em detrimento do pessimismo da razão. Isto, como dizia Fernando Pessoa, mostra que vale sempre a pena quando a alma não é pequena e que somos a medida exacta dos nossos sonhos.
Conheci o autor, já lá vão uma dezena de anos e sei que Tarrafal, o seu concelho, e Chão Bom, o seu berço, fazem parte do seu imaginário. A dureza do trabalho no colunato; a magia da Praia de Mangui; a monstruosidade do campo de concentração fazem emergir nele o sentimento de raiva, alegria, desalento, saudade e vontade de explorar outras àguas, navegar em outros mares e calcorrear outras aldeias à procura de conhecimento e novas oportunidades para servir a sua terra e a sua gente.

O acto de cavar a terra e semear a esperança, vender o fruto do esforço árduo fazem do poeta um homem que trata o trabalho por tu; um homem do campo, um agricultor e humilde filho de Chão Bom que, como todos os outros, sabe ver pelo cio que a vaca precisa do toiro; pelo murchar das folhas que a planta precisa de rega, tal como o poema precisa de rimas para ter melodia.
O poeta, bandeira jovem deste concelho, partilha o gosto pelas letras com outros nomes sonantes como José Luís Tavares, mas decerto bebeu na fonte de Nha Bibinha Cabral, mulher poetisa popular, de formação desconhecida (para não dizer analfabeta), mas doutorada na arte do dizer. Assim o poeta, ainda que doutorando em Ciências da Comunicação, já é doutor na arte de por no papel o que lhe vai na alma e contagiou os amigos e, decerto, a todos nós aqui presentes, actuais e futuros leitores.

Estar aqui hoje a falar do autor e da sua obra é um tributo justo de uma caminhada coroada de êxitos mas não desprovida de batalhas difíceis onde nem sempre a ajuda humana e amiga foi suficiente. Por isso, entre a Sé Nova e Sé Velha o poeta lá conversou com Deus para ajudá-lo nos diversos campos: nos exames; na saúde; no evitar a borga constante que inviabiliza o regresso ao torrão natal e torna o canudo uma miragem; na bolsa de estudo do governo de Cabo Verde que chegava religiosamente atrasado e obrigava a manter a barriga sempre apertada. Com efeito, o autor é também um homem crente, apesar de não gostar de ir à missa todos aos Domingos. Heranças do passado, diz ele. Todavia, por diversas vezes, fez questão de frisar que tudo que lhe aconteceu (os sucessos) fora fruto de um pedido feito nos claustros da catedral de Santiago de Compostela, em Compostela, Espanha aquando da nossa visita a um casal de estudantes galegos, em Abril de 2002.

2. O Poeta e as suas Rimas

Agora, ao navegar pelas bordas do Rimas no Deserto, fico encantado com a maturidade literária revelada, sobretudo, na forma de expressão do autor. Algo conseguido com as leituras aprofundadas de figuras incontornáveis de literatura diversa: desde os teóricos e estudiosos da língua de várias latitudes e credos (como, por exemplo, Roland Barthes ou Joger Piercy), que, decerto, já teve a sorte ou a curiosidade de visitar.

No livro que agora se apresenta, o poeta conduz-nos ao seu íntimo, numa jornada acutilante em torno do sonho, da esperança e, também, da necessidade de uma introspecção constante sobre a nossa condição de ilhéu, não fossemos cidadãos de um país que, segundo Jorge Barbosa, é feito de pedras e poetas ameaçados pelo deserto. Neste sentido, o refúgio no deserto parece uma solução desesperada para perseguir um paradoxo, ou seja, aquilo que nos une, mas também que nos separa: a água, o amor, etc. Todas elas, fontes do evasionismo crioulo.

Rimas no Deserto é um convite a uma viagem descalça à praia das nossas inquietações onde o passado, o presente e o futuro se confluem entre olhares de quem ganhou amores que partiram, encontrou a beleza nas pequenas insignificâncias e a esperança em cada grão de areia que antes era parte consistente de uma rocha maior e que hoje, humildemente, acaricia os pés do viajante, ajudando-o a rimar pelas dunas do deserto afora.

A sensibilidade com que o autor vestiu a obra permite-nos ver os grãozinhos de areia (as letras) como o conjunto de sementes (as palavras) que formam o nosso corpo (a frase) que, sozinhos, têm um significado desprezível, mas, cujo conjunto (a estrofe) descreve o poema de um ser atómico, de tez romântico e poético que habita dentro de cada um de nós. Um ser que rima, (des)construindo o seu próprio deserto, ou seja, a sua própria aventura.

3. O Poeta Amigo

Em primeiro lugar, lembraria que o homem não é um ser indissociável da sua obra, nem tão-pouco esta se dissocia daquele. Porém, tendo sido convidado para prefaciar esta obra, aproveito para evocar, de forma sucinta, o intenso labor literário do autor, que começou a mostrar-se na bela Cidade de Coimbra, desvelando o gosto pelo cultivo das letras, que percorria as suas seivas. Um percurso, estou em crer, apoiado pela recordação constante dos grandes nomes da poética lusófona, escritores e novelistas, que pisaram as ruas labirínticas da cidade de Mondego e que se encontraram presentes na pedagogia dos grandes professores e mestres de quem o autor teve a honra de ser discípulo e agora condiscípulo.

Diante do convite para prefaciar esta obra, em primeiro lugar, veio a surpresa; depois, a responsabilidade que a tarefa exigia, dado tratar-se de um parto novo, em cujo rebento se deposita as maiores expectativas. Contudo, logo me acalmei ao ouvir a voz do poeta dizer que preferia um amigo a prefaciar a sua primeira obra a um conhecido (famoso) que não o conhece. Isto lembra-me Somerset Maughan no Fio da Navalha, quando afirma que o homem é tudo quanto o ajudou a definir a si próprio. Deste jeito, o poeta revela, por um lado, o apreço que tem pela amizade sincera e, por outro, a grandeza do seu ser.

Assim, importa realçar que, à medida que a nossa amizade, enquanto alunos da Universidade de Coimbra, se aprofundava, o segredo era desmistificado pelo respeito mútuo às letras e à paixão pela bela escrita que nutrimos. Foi, assim, que conheci os primeiros manuscritos de prosa poética que desafio o autor a compartilhá-los com o grande público, sendo certo que o primeiro passo já foi dado com este parto.

Estar aqui hoje no Tarrafal, “na nós Tarrafal”, como fazia questão de dizer o padre Santana, que Deus o tenha, é também motivo de reflexão por ser amigo próximo do autor e desconhecer as verdadeiras causas dessa amizade.
Assim refugio num antigo colega de Liceu e hoje jornalista, amigo comum meu e do Silvino, que um dia me perguntou porque razão éramos amigos, ao que ele próprio respondeu: se eu tivesse te convidado para fumarmos um charo, passar a vida atrás do copo, com certeza não seríamos amigos. Com isso, ainda que de soslaio, descortino que o respeito pelo próximo, a naturalidade do feeling, a partilha de valores estruturantes da vida faz de nós grandes amigos e, por sinal, dos melhores dado que, para uma pessoa minimamente esclarecida, amigos não chegam a encher os dedos de uma mão.

Muito obrigado ao Silvino Évora por esta maravilhosa prenda. Por isso, estamos todos de parabéns. Estamos mais ricos e mais sábios neste Tarrafal “di nós tudo”, neste Cabo Verde nosso amor, nosso sonho.

Tarrafal, 13 Janeiro de 2010
Albino Luciano Silva

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