quinta-feira, agosto 03, 2006

Sinais dos tempos: os rabelados vão à escola

No sábado passado, dia 29 de Julho, depois de reler Chuva braba, romance escrito por Manuel Lopes, senti saudade de Cabo-verde e, por isso, liguei o televisor à RTPÀfrica para refrescar as lembranças. Curiosamente, estava a passar um programa sobre a cultura cabo-verdiana. Sem surpresas falou-se de N´toni dente ouro, Nácia gomi, dois nomes consagrados do finason (música crioula) e dos “rabelados” do interior de Santiago. Este texto vai centrar sobre este último aspecto, cuja análise privilegia o lado pedagógico da mensagem transmitida pelo referido canal.
Falar de “rabelados” trás à ribalta um dos raros fenómenos de resistência cultural cabo-verdiana com um historial de sessenta anos. Bem feita às contas, um observador, mesmo que desatento, conclui que o fenómeno rabelados teve a sua génese antes da independência e, ainda, hoje perdura a sua cruzada pela sobrevivência. Esta foi marcada pela pobreza, isolamento, analfabetismo, crença eterna que Amílcar Cabral, o pai da nacionalidade cabo-verdiana, não tombou em Conakri, em 1973, entre outras singularidades que, provavelmente, o leitor já se ouviu falar.
O facto que me chamou atenção na reportagem passada sobre o quotidiano de uma colónia de rabelados de Espinho branco, ilha de Santiago, tem a ver com a conquista da artista plástica Marisa, ex-emigrante na Suiça, ao convencer o chefe da comunidade (Nhó Juvinal) a autorizar o acesso dos rabelados à escola. Decorrente desta consecução, foi construída um jardim-de-infância dentro do bairro e as crianças e os jovens passaram, assim, a frequentar a escola de acordo com a sua idade. À primeira vista, este acontecimento parece, para um leigo, desprovido de importância, mas a verdade é que 32 anos depois da independência de Cabo-verde, cumpriu-se, pela primeira vez, o desígnio da escolaridade universal e obrigatória. Facto que, pelo seu simbolismo, é digno de registo.
A escola a par da igreja é, tradicionalmente, considerada como um veículos de mobilidade social ascendente e, por isso, a sua frequência foi, no século XIX, requerida como obrigatória por um número significativo de Estados. Todavia, os fenómenos de resistência da classe pobre em frequentar a escola ocupam uma parte importante dos anais da história da educação à escala planetária. Em Cabo verde, temos nos rabelados um exemplo marcante. A sua entrada na escola, face à situação actual, da procura desencantada da educação, não constitui uma garantia de que venham a ter um estatuto social superior e uma remuneração compatível, mas é, seguramente, um passo decisivo na luta contra o analfabetismo e a exclusão social que estão votados (já se contabilizam sessenta anos).
A frequência escolar constitui, certamente, um dos momentos marcantes na vida das crianças. Negar-lhes esse direito, ainda que em nome de valores considerados axiais por certos grupos culturais, implica a violação dos direitos humanos e a manutenção/reprodução (forçada) de um ciclo vicioso de pobreza, analfabetismo e exclusão social. Realidades essas, marcantes na comunidade dos rabelados.