segunda-feira, março 05, 2007

Nas Margens do Sonho

A alegria de ver o Tejo a despertar atrevida e tranquila para entrar no atlântico, constitui o prazer maior de quem viaja, diariamente, de barco à procura do pão para os filhos ou, então, do sustento para os ter com segurança e alimentá-los com honestidade. Os catamarã de última geração conferem à viagem um carácter peculiar, azulado, apaixonado e aliviante só de ver o Barreiro, Seixal, Moita, Almada e Montijo a ficarem para trás enquanto ao longe vê-se Lisboa (“menina e moça”) a espreguiçar-se tranquila, enublada e meiga para receber os seus obreiros para mais um dia de dura faina…
À tarde, o barco faz a viagem ao contrário, ou seja, de regresso “rumo ao sul”. O cansaço, o sentimento de um dia ganho, a vontade de chegar a casa acompanham o quebrar calmo e esbranquiçado das ondas e o movimento rectilíneo, às vezes descendente e ascendente do barco, enquanto se trocam olhares cúmplices e dedos de conversa com os companheiros de todos os dias. O jantar, o sono e o acordar às quatro, cinco, e seis da manhã tem um sabor amargo no lado sul, mas a vida e a profissão assim o obrigam. A correria para apanhar o transporte (o autocarro e o barco) para ir a Lisboa responder o ponto, começa todos os dias, religiosamente, bem cedo. O stress de apanhar o autocarro e de perder o barco porque o horário da “bota não bate com o da perdigota”, misturado com a sensação de ter que pedir desculpa no trabalho pelo atraso, fazem dos habitantes da margem sul, um verdadeiro marciano. “Eles são da Margem Sul do Tejo!!!” – assim são referenciados; o que dá a ideia de pertencerem a um lugar recôndito, situado algures entre o Ribatejo e o Alentejo.
Consequentemente, viver no Norte é sempre melhor em tudo: é rico e sublime; o Sul, pelo contrário, é longínquo, pobre e dependente. Assim acontece com os dois Hemisférios do nosso planeta. Neste texto, o rio Tejo é a linha imaginária que separa os dois mundos: a Margem Norte e a Margem Sul. Quem vive no norte tem os transportes variados e à hora (certa), por isso, dorme até mais tarde; sonha mais; e, provavelmente vive melhor. Quem vive no sul, sobrevive num stress permanente e paranóico a pensar sempre nos horários que não se cumprem; na penúria que são os dias da greve, sem os serviços mínimos; e no jeitão que dava em morar ao pé do trabalho: à norte do Tejo. Ainda assim, sofre e acata as decisões injustas que o martiriza de braços cruzados, numa resignação plena e preocupante. Em privado é valente que nem o David a atacar o Golias, no que concerne à crítica sobre o que está mal, mas na hora H, desanda como o Bedford que perdeu o travão e, por isso, a força para seguir em frente. Todos reclamam do valor criminoso do selo, do horário (?!) dos autocarros e barcos, mas ninguém faz greve e manifestações públicas. Dizem que estas modernices só valem a pena de Espanha para lá…ou seja, em França. Para finalizar, importa, ainda, referir que “a nova ponte sobre o Tejo” – Barreiro-Chelas – que os alimentou a esperança durante uma década, morreu, silenciosamente, este ano. O mais certo é verem, unicamente, o TGV a passar (apressada) ao pé das suas casas rumo à Espanha.
Assim, ninguém consegue ser feliz: à margem do sonho; à espera que dias melhores virão para contrariar este triste fado. “O melhor mesmo é guardar a desgraça que se ganha diariamente (os euros) e fugirmos confortável e rapidamente no comboio da alta velocidade (TGV) rumo ao Norte dos nossos sonhos”, confessou-nos um grupo de jovens à saída do Barco, antes de "ligarem o turbo" para apanharem o autocarro; e o repórter Edukamedia não quis ficar atrás. … É assim a vida Nas Margens do Sonho.

Etiquetas:

2 Comments:

At quarta-feira, 07 março, 2007, Anonymous Anónimo said...

Muito bem, meu camarada. Um texto muito bem conseguido... calmo e envolvente, que nos passa a 'mão à cabeça', ao mesmo tempo que nos dá um empurrão como quem quer dizer: ACORDA! ESTÁ NA HORA DE IRES APANHAR O BARCO.
As margens do sonho levam-nos a pensar em muitas outras margens. Nas margens do Tejo, sim senhor. Mas, também, nas margens do Mondego, num afunilar de dias que ficam lá traz, mas não desaparecem... outras margens, as do Mondego. Uma maior ‘calmia’, num tom de troca de palavras que, por vezes, cruza Galiza, Cabo Verde e Coimbra. Margens de leveza, onde as palavras têm sentidos que vão para além do sonho.
Mas, também podíamos pensar em outras margens - as Margens da Vida. Desta vez, não opomos o Norte ao Sul, nem o Tejo corta descortinadamente os dois eixos da vida ao meio. Pensamos naqueles que levantam às cinco da manhã e os outros que chegam à empresa às 10h, bem engravatados; nos que vivem em mansão de luxo e naqueles que só têm uma ‘lasca’ de lata por cima da cabeça; nos que, no final do mês contam com um bom salário e naqueles que passam a vida a fugir das balas da PSP... são outras margens... As margens da vida, que cada vez mais marginaliza os marginalizados e os tornam marginais.
Enfim, entre o sonho e a realidade, descortina-se uma imagem bem nítida. É a grande canoa da vida que leva e traz as pessoas para um e outro lado da margem.
Um abraço

Silvino Évora

 
At sábado, 10 março, 2007, Anonymous Anónimo said...

...muita qualidade.
parabéms.
Jeremias

 

Enviar um comentário

<< Home