quinta-feira, junho 24, 2010

Promiscuidade Pedagógica e Qualidade do Ensino

O amor recíproco entre quem aprende e quem ensina é o primeiro e mais importante degrau para se chegar ao conhecimento.

Erasmo de Roterdão


Muitos dos professores chegam hoje à sala de aula preocupados com a contabilidade da ajuda que mais uma aula lhes dá para o pagamento das despesas como alimentação, prestações da casa e do carro ou para a poupança. Todavia, o que é realmente importante, a formação dos alunos, passa-lhes, simplesmente, ao lado. Ao longo do presente artigo procuramos reflectir sobre a desvirtuação da relação pedagógica, aludindo os seus (d)efeitos na construção da “qualidade do ensino” e de uma sociedade exemplar.

Ser professor é, hoje, segundo Hargreaves (1998), uma profissão de risco em todo o mundo. A indisciplina, o baixo salário, a desvalorização social da profissão e os alunos cada vez menos estudiosos, mais irreverentes e, em alguns casos, “violentos” engrossam, quanto a nós, a lista dos atentados à satisfação pessoal e profissional dos professores e, consequentemente, à motivação dos mesmos para a profissão.

Os bons professores são eternos. Os menos bons pouco se preocupam em mudar de metodologia de ensino quando os alunos mostram dificuldades em compreender ou em aprofundar determinados conteúdos. Os grandes mestres, por seu lado, caracterizam-se pela paixão pelo ensino e, geralmente, são pouco materialistas. Passam o seu tempo livre a investigar para serem cada vez melhores sem, contudo, se esquecerem do conforto como qualquer outro mortal.

Convém lembrar, também, que os alunos interessados esperam que cada aula seja uma gota a mais de informação e conhecimento para que, aos poucos, se tornem intelectualmente fortes no sentido de virem a ser bons profissionais e, quiçá, a superarem o próprio mestre.

Em algumas paragens do globo, certos professores retiram as chances de autonomia dos alunos ao esconderem materiais pedagógicos relevantes, incluindo retirar livros das bibliotecas para que reforcem a dependência da exposição da sala de aula e, deste jeito, tornar os alunos debilitados para a aprendizagem autónoma.

No terreiro da leccionação, ou seja, no micro cosmo da sala de aula, a realidade denuncia, segundo a confissão de uma percentagem cada vez crescente de alunos que certos professores expõem um conjunto de fraquezas: a ausência de processos lógicos na preparação das aulas, a tentação de abordar assuntos extra aulas (corriqueiros) para desviar a atenção dos alunos e, assim, “esquecer a matéria”, a formação de base e/ou avançada bastante limitada e, por último, a indigência de fazer coligações com os alunos contra a instituição para a qual trabalham ou, simplesmente, prestam serviço.

Levada ao extremo, esta realidade traduz-se na procura, pelos professores, de bodes expiatórios pela insatisfação global (angústias dos próprios e dos alunos) e, em certos casos, desenvolvem relações de amizade que, por vezes, chegam a ser verdadeiras cumplicidades promíscuas.

Consequentemente, esta realidade é referida com simplicidade e, de quando em vez, ela é reportada nos media, mas os desenlaces não são devidamente trabalhados. Neste sentido, urge, quanto a nós, uma tomada de posição dos gestores e administradores das escolas por razões éticas (sendo estas cada vez mais exóticas) de modo a evitar que se quebrem as lógicas de confiança e de boa fé que precisam existir entre a escola e a família e entre o professor e o aluno.

Quando um pai ou uma mãe deixa o seu filho ao cuidado de uma escola, à partida, acredita que, no final de um ciclo do estudo, o seu educando sairá melhor do que quando entrou; que os professores darão o melhor si para o bem dos alunos; que cumplicidades duvidosas entre docentes e alunos só acontecem aos filhos dos outros. Esta relação de confiança foi reafirmada por Paulo Freire quando diz que a escola será melhor na medida em que cada ser se comportar como colega, como amigo, como irmão.

A existir, do ponto de vista pedagógico, “laços comestíveis” entre o professor e o aluno, a relação pedagógica é gravemente quebrada e a avaliação (algo sempre subjectiva e, por isso, discutível) acaba por ser claramente um negócio, ou seja, uma troca de favores.

Tudo isto leva-nos a pensar na promiscuidade da relação pedagógica, isto é, nos professores que prestam um serviço, a leccionação, a várias instituições apenas por dinheiro desligado da preocupação com a qualidade mínima e sem uma relação verdadeira com os alunos. Esta situação é vulgarmente justificada pela carência de quadros qualificados, o que faz com que “qualquer água sirva para matar a sede”, e pelas teias de relações que, por um lado, determinam, em muitos casos, o acesso à vaga de docente no ensino superior e, por outro, explica a manutenção circular do posto.

Perante o problema da desvirtuação pedagógica, as instituições de ensino devem posicionar-se. Quanto a nós, sem querer armar-se em receituário ou think tank, uma solução simples é a não proibição pela proibição, dado que parece ser pouco inteligente.

A estratégia deve ser a avaliação rigorosa do desempenho docente (feita por avaliadores e não por amadores) para tirar as consequências devidas, seguida da tomada de decisão fundamentada, devendo ser considerado um “herói”, com direito a uma estátua no sítio mais movimentado do centro da cidade, todo aquele que tiver uma relação laboral, a tempo inteiro, com uma instituição pública ou privada e seja, ainda, capaz de leccionar em tantas outras escolas, fazer investigação mínima e publicação, ser apreciado pelos alunos (actuais e antigos) e, por último, passar no crivo geral da avaliação do desempenho docente.

As escolas sobreviveram aos séculos graças às peças importantes que a deram vida: os alunos e os professores. A relação entre os dois foi, quase sempre, de dependência destes sobre aqueles. Os tempos mudaram e os alunos tendem a ganhar espaço e independência, tirando o monopólio aos professores com o florescimento dos media e a diversificação das fontes de informação.

Contudo, os professores, na defesa do seu ego ferido ou por incúria ou maldade, em certos casos, procuram impor o seu poder, ignorando as reais necessidades dos alunos. A desvirtuação pedagógica surge, neste contexto de “afirmação forcada” do docente, do seu egocentrismo na defesa de interesses pessoais (monetários e status) em detrimento do respeito pela pedagogia e pelo elo central da relação pedagógica: o aluno.

A filosofia da educação (que vê a escola como uma das formas de preservar o homem intemporal) alicerçada pelas correntes defensoras dos professores como profissionais reflexivos (Giroux, 1997), propugna que a lealdade entre professores e alunos seja a base para a edificação de uma escola sã para uma sociedade pacificada com ajuda da família. A traição ou sabotagem destas peças importantes da relação pedagógica faz nascer quezílias pouco abonatórias quer para a escola quer para a sociedade.

As consequências da desvirtuação pedagógica podem revelar-se no tipo de sociedade que estamos a criar onde figuram alguns males, nomeadamente o índice de expectativa na instituição escolar tende a diminuir à medida que o aluno chega ao fim de um ciclo de estudos e encontra dificuldade em entrar no mercado de trabalho e as desistências motivadas por reprovações ou abandono (com quebra de auto-conceito escolar do aluno), cujas consequências a sociedade terá de suportar.

A escola para muitos deve ser um modelo para a sociedade. Por essa razão, ela deve estar de boa saúde para emendar, a tempo, as fissuras, a montante, e evitar, assim, danos, a jusante. A todos devemos um sistema educativo eficiente e respeitador, que prepare os alunos para as realidades sociais, culturais e profissionais do século XXI. O desafio começa por trabalhar na construção e formação científica do professor para a mudança necessária.
Publicado no Jornal Asemana, 18.06.10, p.26.

Albino Luciano Silva
Mestre em educação, esp. Administração e Organização Escolar e Pós-graduado em Gestão e Avaliação da Formação
Blog. www.edukamedia.blogspot.com; e-mail: s_albino21@hotmail.com

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1 Comments:

At quarta-feira, 21 julho, 2010, Blogger Direito Reservado: Marcelo Rocha de Deus said...

Adorei...

Estou de cara nova, dê uma olhada, tem muitas novidades, peço gentileza, segue-no blog, tambem seguirei voces.
att.

 

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