segunda-feira, janeiro 21, 2008

Poesia Incompleta

Foi num dia como outro qualquer que apanhei o barco de manhã para galgar as margens do Tejo numa rotina quotidiana partilhada com as mesmas caras, os mesmo percursos, os mesmo movimentos que, por vezes, obrigam me a praguejar a reprodução normalizada através de um monólogo inofensivo e sem destinatário concreto. Contudo, ao entrar no catamarã da Soflusa avistei uma amiga sorridente acompanhada por uma jovem aparentemente tímida e detentora de um olhar pincelado pela mestria de Leonardo da Vinci (e, nesse instante, a preocupação com a rotina dissipou-se vagarosamente como uma nuvem empurrada pelo vento numa tarde de verão). Escolhemos um lugar ao pé da janela e conversamos enquanto o barco afastava a água azulada do rio, abrindo caminho em direcção ao terreiro do paço. Assim, passei a saber que estava perante uma cabo-verdiana recém chegada ao rio que B Beleza outrora enamorou no seu hino de lágrimas nostálgicas sobre a emigração na “capital da saudade”. Depois dos quinze minutos da travessia concluídos, o trambique da vida e os compromissos obrigaram a prosa a ficar a meio (como é habitual nas cidades geradoras de teias de funcionalidades e da “solidão povoada”).
Naturalmente, as pontas do diálogo foram se atando pelos encontros ocasionais nas paragens de autocarro, barco e através das mensagens grátis. Depois de alguma cavaqueira descobri a pessoa que se encaixava por detrás da timidez e dos olhos artísticos. Uma jovem de vinte anos, simples; “com a cabeça no lugar”; respeitadora, respeitada; amante de um bom funaná e zouk love; desejosa de prosseguir os estudos; de receber o óleo da confirmação ou crisma; de ajudar o irmão; e de manter-se ligada às amizades que, como uma jardineira a cuidar das suas plantas, fora construindo na sua aldeia natal. A estória da sua vida foi marcada por uma luta constante pela sobrevivência ordeira sem a presença de duas armas importantes: os pais. A emigração foi a estratégia encontrada para a reunificação familiar cuja consequência lógica conduziria à junção das vértices de um triângulo equilátero composto pelo chefe da família (mãe) e os rebentos (ela e o irmão) debaixo de um tecto alugado na margem esquerda do Tejo.
Ao conversar com a nova emigrante que, tal como a maioria dos cabo-verdianos, viu na “sina” da emigração uma saída para a resolução das debilidades que as ilhas apresentam, notava-se a existência de sonhos na flor da pele, no som das palavras que descortinavam a saudade da “terra longe”, no desejo fervoroso de trabalhar para conquistar a independência, somando realizações e na beleza construída em cada gesto simples e inquietante tal como uma Mona Lisa a mirar o Sena. Porém, numa Sexta-feira, no penúltimo mês de 2007, ao acordar recebi uma notícia triste de consequência, na altura, imprevisível – um acidente em Lisboa (terreiro do paço) envolvendo uma viatura e alguns peões. Durante o dia fui ouvindo versões incompletas do sucedido, mas no dia seguinte, antes de levantar da cama, peguei no telemóvel e obtive as coordenadas da tragédia, custando-me aceitar a brevidade da existência. Ao receber o nome das vítimas e outras informações complementares como, por exemplo, a morada e a naturalidade, confirmei o que antes desconfiava: a perda de uma amizade em fase de germinação como se fossem as lágrimas de cera que se derretem à medida que a vela produz a sua luz peculiar e se apague, deixando, no lugar da beleza, os sinais de uma existência efémera…
Uma vez que “por detrás de cada lágrima existe uma esperança” notei que a vida é uma sucessão dos dias que nos marcam e deixam marcas entrelaçadas pela incerteza que nos torna imperfeitos, sonhadores, frágeis, pragmáticos e, por vezes, admiradores tardios das “pequenas insignificâncias”. Por isso, gostaria que as estrelas deixassem, nas pessoas amáveis que precocemente partiram na viagem sem regresso, uma gota do seu brilho revestido pelas nuvens que molham o nosso imaginário barrado pelo horizonte da memória. Por cada semente que germine, por cada flor que brote nos campos, por cada pássaro que cuide do seu ninho, por cada sorriso inocente de uma criança, por cada mãe que embale o seu filho exista uma força enxugadora de lágrimas, esboçadora de sorrisos e poetizadora da amizade. Assim, encaro cada gota enviada pelas nuvens como a métrica de uma poesia incompleta levada pelo vento…

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domingo, janeiro 20, 2008

Quando Penso em Ti…

Estou sentado dentro de um carro com os olhos postos no futuro. À minha frente, através do vidro, contemplo a ponte vermelha a centenas de metros de distância – com muita luz, inúmeros veículos a cruzarem as margens numa deambulação quase paranóica. Debaixo da ponte, pequenos veleiros e grandes barcos andam vagarosamente como quem perdeu a pressa de chegar ao destino. A poucos metros do carro, sinto e vejo o quebrar intempestivo das ondas nas praias que durante verão fazem furor, provocando enchentes espectaculares. Dentro de mim, toca André Sardet: quando te falei em amor. Por isso, mudei os ângulos do meu olhar – perdi o longo alcance – e procurei mirar no meu íntimo, a resposta à multiplicidade de emoções que ocorrem só de saber que ainda vives dentro de mim.
Faço marcha trás e mergulho, sem hesitação, no quilómetro MMI. Nesta baliza da auto-estrada do meu viajar, as andanças nocturnas por vicissitudes da vida; o sentir do cheiro do perfume exalada pelas plantas às altas horas da madrugada; e a beleza entrelaçada pelas palavras que se ouvem no silêncio dos nossos sonhos, fazem me sentir mais eu; e nós mais próximos. O chegar tarde à casa e sentir o gosto de uma amizade demonstrada na lisura dos cereais mergulhados numa tigela de leite bem quente que aquece a alma, ao mesmo tempo que me devolve a força para alterar o ciclo natural do dia, faz-me viajar na curva do tempo à procura da alma que ficou nessa oferta – e que eu, silenciosamente, adorava. Isso compromete-me! Assim, deixei de ver a ponte da liberdade, mandei pôr o ferro no fundo e caminhei, cambaleando taciturno entre olhares apressados, zonas despidas de movimento e assentei no primeiro sítio que calhou para tomar um copo – uma desculpa para refrescar a alma e matar a sede de uma viajante!
Desta vez, por cima de mim, passavam muitos carros apressados; ao meu lado, barcos de recreio e de sonho repousavam pacientemente à espera de utilização; a brisa fresca do rio acompanhava o movimento certeiro e convicto do copo à procura dos lábios ressequidos. Tiro o primeiro gole e sinto uma sensação estranha! Um gosto diferente… de algo que já experimentei e de cuja memória tenho, simplesmente, o eco – disse para mim mesmo, num monólogo rápido e preocupado. Assim, pus-me a devagar sobre a química do precioso e estranho líquido. Demorei eternos minutos a estabelecer ligações, sob olhares furtivos, sons meio ensurdecedores, mas que dava ao ambiente um semblante nocturno, boémio e poético.
Levei, uma vez mais, o copo à boca e num acto suave e de rápida degustação, encontrei a ansiada resposta. A bebida, em si, é normal; estranho é o remake que faz do passado ao trazer para o brilho da noite, o gosto misterioso de um beijo trocado num dos quilómetros da auto-estrada, provavelmente depois de experimentar o primeiro cálice [da bebida em causa], na cidade de ruas tortas e toscas, onde o Mondego irradia a magia na sua passagem apressada a caminho da foz - levando com ele a saudade.

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